domingo, 1 de dezembro de 2013

Amizade ou a vida com adornos

Li que, em sua etimologia, a palavra amigo deriva de animi (alma) e custas (custódia), sendo 'amigo' um 'guardião de alma'. Esse significado me pareceu extremamente apropriado. Acredito que quando criamos laços de amizade, entregamos aos amigos um pedacinho da nossa alma para que eles o guardem, bem protegido, consigo. No decorrer da vida, nossa alma acaba então espalhada pelo mundo, levada aos quatro cantos por guardiões que testemunharam e compartilharam nossos momentos bons e ruins.
Talvez por a um amigo ser confiada uma parte tão frágil e essencial de nós, perdê-lo é extremante triste e melancólico. E aqui não me refiro a perdê-lo para a morte. Quando a morte nos leva um amigo, o pedacinho da nossa alma que ele guarda vai junto, para lhe fazer companhia na vida eterna. Aqui me refiro à tristeza de perder um amigo para a vida. Aquele macabro ritual em que o guardião devolve a coisa que ele deveria proteger, mas não é mais capaz de fazê-lo. Às vezes nós queremos o pedacinho de alma que ele guarda de volta, mas em outras ele teima em devolvê-lo à força e não nos resta alternativa senão costurá-lo de volta, a pontos crus, muito dolorosamente. 
Eu não seria capaz de contar quantos pedaços da minha alma andam espalhados por aí. Não caberiam nos dedos e minha matemática nunca foi boa. De qualquer maneira, isso pouco importa. Importa-me mais saber onde eles estão guardados. Se em um lugar visível, se à cabeceira dos amigos, se esquecidos embaixo da cama, cobertos de poeira, ou em uma prateleira nunca usada... 
Hoje fiz uma faxina em mim, selecionei e limpei os pedacinhos de alma de que sou guardiã. Fui a uma loja de material de construção e comprei uma prateleira, instalei-a de frente à minha cama, em um lugar em que ela é a primeira coisa que vejo ao acordar. Lá coloquei os pedacinhos de alma, limpinhos e organizados.
Na faxina encontrei os amigos antigos que eu não vejo há muito tempo, mas que me fizeram muito feliz. Lembrei de como a gente vivia as coisas intensamente, de como éramos inconsequentes e radiantes. Achávamos que a vida era tudo ou nada, que as paixões eram as últimas que iríamos viver. Carinhosamente os enfileirei na prateleira, bem guardadinhos, para que eu possa lembrar todos os dias de tudo o que aprendi com eles.
Encontrei também os pedacinhos de alma dos amigos antigos que ainda estão ao meu lado diariamente. Que belas almas eles possuem! Vê-las assim, em sua simplicidade, me fez pensar na beleza das relações cotidianas, nos sorrisos partilhados, na cumplicidade não-verbal que se expressa em pequenos gestos e atitudes, na agressividade e na forma como nós nos protegemos, mesmo que inconscientemente.
Encontrei ainda os amigos que a vida me trouxe por acaso, quando eu não esperava nada dela. Por esses eu agradeço sempre, pois eles estão sempre comigo. São eles que me fazem gargalhar e neles eu vejo refletidos os meus sonhos. Um sentimento forte de admiração tomou conta de mim ao encontra-los. Muito longe de casa, a vida me apresentou a amigos que me ensinaram a tolerar as diferenças e até aprender a ver a beleza que existe nelas. A palavra ternura já se parece com eles.
Em um canto meio esquecido, encontrei algumas marcas queimadas. Com um pouco de tristeza constatei que eram os lugares dos amigos que se foram. Tentei lembrar dos bons momentos que partilhei com eles e senti muita tristeza pelo pouco talento humano para a grandiosidade.

Depois que terminei de organizar os amigos na minha prateleira, me sinto muito mais leve. Encontrá-los todos me lembrou do muito que aprendi e do quanto os admiro. E como são diferentes os amigos! Mas isso não importa, afinal as diferenças não podem ser maiores que os afetos. A grandiosidade da vida faz essas diferenças parecerem menores que poeira. A vida é muito maior que isso... A vida é muito maior que a gente. Enfrentar os dias parece uma tarefa bem simples agora.



*A Dan e Lucas que abriram a porta e a Carlinhos que, com o espírito do acendedor de lampiões de Jorge de Lima, tem teimado em acender a luz sempre que ela se apaga.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Sobre amor, selvageria e liberdade

Acordo e percebo que esqueci de desligar a música. "É hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar!", cantam os meus fones de ouvido. Sorrio com a ironia daquela letra, justamente neste dia que não me parece nem um pouco alegre. Talvez seja importante acordar com essa mensagem de otimismo. Pelo menos a ironia serviu pra me lembrar que dias alegres existem com mais frequência do que consigo conceber agora.
Lembro que fui dormir ouvindo o Gonzaguinha cantar que pegou um sonho, desceu o Morro de São Carlos e pôs a perna no mundo. Ele achava que pertencia ao mundo! Essa ideia é tão familiar que até consegue me fazer gargalhar, neste dia tão pouco cavalheiresco.  Acho que ele também era ave de rapina... Quantas gaiolas será que deixou pra trás para sê-lo?
Já faz um tempo que encontrei uma águia com a asa quebrada e a trouxe pra casa. Tenho cuidado dela desde então. O problema é que acho que me empenhei demais nos cuidados... Acho que dei amor demais pra ela. Quanto mais cuido da águia, mais forte ela fica. Anteontem a vi olhando pro céu com semblante de sonho e saudade.
Quando criança tentei criar uma galinha d'água. Linda! E eu a amei tanto! A amei tão sinceramente que nunca cortei suas asas. Achei que seria crueldade cortá-las. E seria. Nunca cheguei a saber se ela também me amava, mas o fato é que um dia ela voou e se foi. Nunca mais a vi. Dela sobraram apenas algumas penas no lugar onde costumava dormir.
Muitos anos depois vi um personagem de cinema dizer que não devemos amar criaturas selvagens. Quanto mais amamos, mais fortes elas ficam, até terem forças pra voar até a árvore mais próxima e depois pro céu. Não fazem por mal, apenas é de sua natureza a liberdade. Elas pertencem ao céu e, a princípio, é isto que nos faz amá-las. Dizem que as mais belas coisas da vida são livres e selvagens. Acho que é verdade.
Parece que a asa da águia está cada dia melhor. Acho que não demora a ela alçar voo. Mesmo depois de todo esse tempo, da galinha d'água, do filme e tudo o mais, cometi o erro de dar meu coração a um ser selvagem. Sei que ela precisa ir, voar por aí e conhecer o mundo. Em seu voo solitário ela vai aprender muito, vai ser quem nasceu pra ser. Não adianta tentar mudar isso, afinal, é o que há de mais bonito nela. Espero que ela consiga mostrar para todos quanta beleza existe em seu âmago.
A águia acordou. Sua asa está boa, afinal. Ela me deu um último olhar e se perdeu no céu azul. Agora parece apenas um pontinho escuro, lá longe. Como está bonito o céu de hoje!



*Baseado em:
http://letras.mus.br/gonzaguinha/46266/
http://letras.mus.br/monobloco-musicas/768511/
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-2736/

sábado, 9 de novembro de 2013

Cinismo

Hoje ouvi do meu apartamento uma briga de casal. O relacionamento, pelo que pude perceber, acabara por uma traição da parte dela. Eles brigavam a plenos pulmões na frente do prédio, indiferentes a todos os moradores que os ouviam proferir ofensas e confessar intimidades.
O rapaz a acusava de tê-lo trocado por um cara rico e ela nem se dava ao trabalho de revidar. Na minha escuta, primeiro tomei partido do rapaz. Ele parecia muito magoado. No entanto, no auge da discussão ele começou a chamá-la de puta. Achei aquilo muito forte! E ela apenas ouvia, balbuciava uma ou duas palavras e se calava, enquanto ele gritava para a rua inteira o quanto a achava vagabunda. Senti vontade de gritar: “moça, diga alguma coisa! Não deixe esse cara te tratar assim!”, mas não gritei nada e ela aguentou as ofensas até o fim.
Fiquei me perguntando o porquê daquela moça ter se apaixonado por um cara que acabaria gritando coisas horríveis sobre ela para quem quisesse ouvir. Teria sido ele, no início de tudo, um gentleman? Duvido muito... Teria ao menos, ao longo do relacionamento, dado a ela uma flor? Teria ele usado a estranha e eficiente linguagem dos namorados de Drummond?

Imaginei quantas coisas bonitas eles deviam ter vivido juntos e que agora, naquele momento de raiva, nada significavam. Estava tudo esquecido e acabado. Cada um queria apenas sair fazendo o maior estardalhaço possível, batendo a porta e deixando pra trás muita bagunça e sofrimento. Se um dia eles se encontrarem na rua, muito tempo depois das ofensas gritadas na frente do meu prédio, será que irão sorrir um pro outro, se abraçar e perguntar “oi, tudo bem? Quanto tempo!"? Ou vão apenas fingir que não se viram ou não se reconheceram? Cartola disse que de cada amor a gente herda só o cinismo. Aquele casal desconhecido brigando me fez perceber que essa frase tem muito de verdade. 

domingo, 29 de setembro de 2013

E se eu morresse amanhã?

- Tenho medo de acordar qualquer dia desses e ter sessenta anos.
- Falta pouquinho mesmo! Só quarenta anos, três meses e quatro dias!
- Mas é sério. Os dias passam tão rápido e a gente os deixa ir mecanicamente, fazendo sempre a mesma coisa em todos eles. No fim, não vemos nada do mundo. Meu Deus, eu vou morrer sem ver nada do mundo!
- Você me lembra o poema do Drummond.
- Que poema? Ah meu Deus, mais uma coisa que eu ia morrer sem conhecer.
- Aquele 'A Flor e a Náusea'... "Todos os homens voltam para casa. Estão menos livres, mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem".
- É isso. Eu estou perdendo o mundo. Deixando ele ir embora... Prendendo-me apenas a pequenos fatos, insignificantes diante da grande ordem das coisas.
- Mas a gente ainda é tão novo pra se preocupar com essas coisas...
- Nada... E se eu morrer amanhã?
- Se você morrer amanhã eu prometo que não deixo tocar músicas do Roberto Carlos no seu enterro.
- Caramba, obrigada! Seria demais pra a minha memória! Diz pra mandarem um belo Vinicius de Moraes, um Canto de Ossanha... Se bem que não combina muito com enterros. Melhor, eu vou de 'Encontros e despedidas', que é mais a cara da ocasião.
- Só não garanto falar algumas palavras. Não tenho coragem de falar em público.
- Em público! Quantas pessoas será que teria no meu enterro se eu morresse amanhã?
- Que papo mais medonho! E voltamos aos poemas de novo! "Se eu morrer antes de você, faça-me um favor. Chore o quanto quiser, mas não brigue com Deus por Ele haver me levado..."
- Vinicius pega meu coração e espreme como que a um limão.
- A mim também. Sempre acho que ele soube algo da vida que eu ainda não compreendi. Essa coisa meio visceral que existe no que ele escrevia me faz pensar que talvez eu não esteja vivendo com a intensidade que deveria.
- Será que um dia a gente sabe se viveu direitinho ou se desperdiçou uma encarnação fazendo asneiras?
- Talvez antes de morrer... Dizem que passa um filminho na cabeça. Vai ver ele nos ajuda a refletir sobre isso.
- Acho que a gente devia viajar, se encantar com as coisas. É tão importante se encantar com a vida. Sinto falta disso...
- Eu também. Quando eu era criança, a vida era como uma descoberta diária. Tudo me causava êxtase...
- Se amanhã eu acordar com sessenta anos, espero ver algo bem simples e me emocionar. Não quero ser uma dessas pessoas amargas que veem tv e esperam a morte vir buscá-las no colo, já que nem ânimo pra ir sozinhas elas têm.
- Acho que você não vai ser assim.
- Por quê?
- Porque você sorri com os olhos. E sorri de tudo, com uma verdade que eu nunca vi.
- Essa foi a melhor coisa que eu ouvi hoje.

domingo, 22 de setembro de 2013

A pequena

A risada dela tinha o poder de fazer o mundo parar por um segundo. Na verdade, o tempo, que sempre mostrou-se tão cruel, parecia passar muito devagar pra ela... A moça, quase uma menina, levava a vida como se fosse viver pra sempre, desperdiçando o tempo com coisas simples e sem importância.
Conheceram-se no carnaval. Ela dançava ciranda balançando o cabelo cheio de pequenas tranças, enquanto ele passava por ali, a caminho da casa de um amigo. Chovia e ela o notou alguns segundos depois dele percebê-la, e o sorriu. Foi aí que ele aprendeu que o mundo, que girava com tanta pressa, podia parar por alguns momentos. Acabaram sendo apresentados por um amigo em comum e começaram um relacionamento que tinha um quê diferente para cada um dos dois.
Ela divertia-se imensamente com a preocupação dele com coisas sérias. Ele achava fascinante e preocupante o jeito despreocupado dela levar a vida. Ela ensinou-lhe a trançar seus cabelos cor de abóbora e ele desenvolveu o hábito de trazer da rua sempre uma papoula amarela para colocar neles. Adorava a combinação de cores que se formava. Ela gostava de vê-lo com os cabelos grisalhos molhados, como quando se viram pela primeira vez.
Ele sempre fazia muitos planos para os dois. Ela, no entanto, jamais planejava nada. Gostava de ser livre, de andar descalça na areia e com os cabelos soltos ao vento. Ele sorria como quem sempre buscou se encantar com a vida, mas até ali só encontrara desencanto e feiura.
Passavam muito tempo juntos. Por ele, dobrariam o tempo e o guardariam no bolso, para poderem aproveitar a eternidade em paz. Mas ela gostava de usar algum tempo para si. Às vezes vestia-se lindamente, colocava batom vermelho e saía, deixando pra trás um coração de meia idade aflito e complacente. Sempre que isso acontecia, ele pensava se chegaria o dia em que ela não ia mais voltar. E lidar com tamanha liberdade de espírito consumia todo o esforço dele, que jamais havia se dedicado tanto a nada além de papeladas enormes.

A pequena ensinou-lhe a importância de se encantar com a vida. Foi com ela que ele aprendeu a apreciar o gosto de uma laranja recém tirada do pé e a beleza dos acordes de uma bossa. E quando um dia ela não voltou mais, ele soube perceber a beleza das coisas finitas e belas. Quando o tempo parou pra ela sorrir pela última vez, ele percebeu que as coisas podem ser ainda mais belas quando duram apenas o que podem durar. E ele colheu uma papoula no jardim da casa onde foram felizes e colocou nos cabelos dela, pra que eternamente as cores da flor e do alaranjado pudessem contrastar lindamente. 

*Baseado linda música do Chico:
http://www.youtube.com/watch?v=ZRLayH21Gnk&hd=1

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Tempestade

Deu na tv que vai chover de novo hoje.
Falaram que as pessoas estão fazendo romarias nas ruas e tudo o mais. Alegam que não suportam mais tanta água caindo e pedem a Deus que pare a chuva, pra ver se sobra alguma edificação em pé na cidade. Será que eu deveria avisá-los de que não vai adiantar?
Afinal de contas, apenas uma pessoa tem o poder de fazer a chuva cessar. E o combinado foi que iria chover até lavar toda a tristeza da cidade e trazer um você bem leve e sorridente pra mim...
Meu bem, em você ainda tem muita tristeza pra mandar embora com a água?
A chuva é camarada, disse que está comigo nessa até o fim, mesmo que precise carregar na enxurrada a Igreja de São Francisco e aquela estátua em homenagem ao Ariano, que ela ama. Tadinha dela, depois nem vou saber como agredecer a força. Mas tenho medo que depois de não sobrar tristezinha nenhuma, em lugar algum, você acabe achando algum sorriso por aí mais bonito que o meu. Pode até ser besteira minha, mas sempre fui assim meio pilhada com tudo.
Meu bem, vê se não demora a resolver essas suas pendências, tá?
Eu sei que não posso te cobrar muito, afinal, coração demora a sarar. O seu estava bem ruim, né? Naquele dia em que você me mostrou, ele estava todo cheio de espinhos que aquela rosa deixou. Mas se você os tirar com cautela, um por um, e depois lavar direitinho, acho que fica como novo. Se sobrar uma cicatriz ou outra eu nem vou ligar.
Meu bem, São Pedro tomou partido dos populares... Disse que não é direito a chuva estar tentando te arrastar pra mim. Como que a gente faz agora? Ainda demora pra você vir? Ainda tem muita tristeza na cidade pra lavar? Já acho os sorrisos bem mais bonitos agora, e o monumento ao Ariano e a igreja ainda estão de pé também. Acho melhor você vir agora.
Ele me perguntou de onde eu tirei essa ideia de lavar tristeza com chuva. Tive que contá-lo daquele dia no Chorinho, quando a chuva molhou todo mundo e fez brotar a alegria. Ele pareceu um pouquinho impressionado com a história, mas não mudou de ideia sobre fazer parar a tempestade.
Ajeita aí as coisas e corre pra cá! Baixei um filme do Carlitos e se brincar até canto pra você. Eu canto mal, mas a intenção é a melhor possível. Quem sabe umas risadas e a minha boa intenção não terminam de sarar o seu coração.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Amor-sussurro

Eu sempre achei que pra amar direito a gente precisava fazer barulho, gerar alarde. E fiz assim por muito tempo. Gritei por cima de telhados, publiquei nos jornais e revistas, coloquei anúncios nas rádios e compus canções. 
Mas um dia eu expliquei pra um moço desconhecido o que eu achava do amor e ele riu pra mim e balançou a cabeça negativamente. Não me disse, no entanto, qual era a sua opinião. O moço desconhecido virou um moço conhecido e nunca me falou as suas teorias sobre o amor. Acabei por descobri-las assim mesmo. Ele ama baixinho, como o Quintana mandou. Agora eu vejo que esse é um ótimo jeito de se amar. 
Sofri, chorei e aprendi a amar baixinho também, sem chamar atenção, tranquilamente. É bem menos visceral, mas infinitamente mais seguro e sólido. Esse amor baixinho consegue povoar os meus sonhos todas as noites e preencher os meus sorrisos todos os dias sem levar nenhum pedaço de mim, sem me ferir. 
Eu devia mesmo era ter ouvido o Quintana desde sempre, mas nunca fui boa em ouvir ninguém... 
E chego ao motivo dessas linhas: saudar o amor-sussurro que suturou as minhas feridas, curou-me daqueles terríveis infartos sentimentais e me ensinou o jeito mais lindo de se amar!

domingo, 19 de maio de 2013

A moça e o moço

Ilustração: Érica Rodrigues
A moça do sorriso ensolarado morava sozinha e tinha um gato. Cantava no chuveiro, na chuva, na cozinha. Amava fazer coisas, seja o que fosse. Agradava-lhe o processo de iniciar um trabalho e concluí-lo. Bordava, costurava, pintava, escrevia, compunha, tocava, plantava e produzia (com uma absurda paciência) seus próprios cadernos. Dava-lhes títulos e escrevia neles o que lhe vinha à cabeça. Ouvia discos inteiros à exaustão. Tinha a música como uma aliada, que estava sempre ali para completar os seus dias, a sua luz (que nessa época era fraquinha, fraquinha, coitada...). Mas faltava-lhe sempre alguma coisa, e ela não conseguia imaginar o quê. 
A moça do sorriso ensolarado construiu sua luz aos pouquinhos. Quando ainda não brilhava, dificilmente sorria. Deixava-se levar pela tristeza do mundo e pela maldade dos que julgavam o seu jeito livre, selvagem. Antes de ter luz própria, a moça chorava sozinha todos os dias, como num ritual. E foi aos tropeços que ela conseguiu tomar as rédeas da sua luminosidade e canalizá-la pro mundo. 
Quem trouxe o sol pro sorriso da moça foi o moço da cantiga bonita. Ele chegou num dia gris, trouxe uma begônia laranja e entregou para a moça. E foi então que o sorriso dela ganhou o sol e começou a brilhar mais do que ele. O moço da cantiga bonita nunca mais foi embora. Apesar de sofrer um pouquinho com a selvageria de espírito da sua companheira, ele está sempre ali por ela. O moço entendeu que a amada é livre, é simples e acima de tudo é frágil. E por amá-la em progressão geométrica, incumbiu-se do papel de protegê-la de todas as coisas feias do mundo, de nunca deixá-la chorar novamente. 
E foi assim que a moça do sorriso ensolarado virou uma mulher. E agora não mora mais sozinha com seu gato. O moço da cantiga bonita agora mora com os dois e garante que os dias sejam todos gris e que as begônias estejam sempre floridas. O moço da cantiga bonita toca violão de manhã e faz café. Acorda sempre feliz porque a felicidade é sua amiga. O moço da cantiga bonita pintou a vida de laranja pra combinar com o ensolarado do sorriso daquela pra quem ele compõe. 
E o céu se move bem devagarinho pra ver a felicidade, a cantiga e o sorriso dos dois. 


terça-feira, 30 de abril de 2013

Coração-sertão


Eu possuo um malfadado coração-sertão.

A realidade desse tipo de víscera, digo-lhe, é muito penosa. Falo com conhecimento de causa. Ela não precisa de muitos cuidados de seu dono, está eternamente a mercê das vontades externas. Vive à espera de chuva. Em período de seca parece morta, incapaz de fazer germinar o que quer que seja. No entanto, qualquer chuvinha, um simples sereno, consegue pintar tudo de verde. Um verde vivo, lindo de se ver!

Os corações-sertão possuem um poder de renovação digno da caatinga. É um fenômeno interessantíssimo de se estudar! Acostumaram-se a situações extremas, a passar pela vida com pouco. Contentam-se com o que lhes é dado. Agradecem florescendo o mais rápido que podem. Assim como o bioma que lhes dá nome, os corações-sertão são extremante gratos. Agradecem qualquer afago com vida e beleza de espírito. Apesar de não parecerem, eles são muito férteis.

Entretanto, quando a chuva (ou o afago) não vem, o coração-sertão pinta-se de cinza e fica seco, triste de se ver. Graças à sua incapacidade de fingir, a víscera demonstra claramente tudo o que se passa em seu íntimo. Quando em período de seca, o pobre músculo limita-se a murchar e adormecer... E espera. Espera pacientemente. Um olhador que não o conheça bem é capaz de jurar que ele já não vive. Mas o coração bravamente conserva-se ali, adormecido, embaixo de sol forte, a esperar qualquer pinguinho que o faça germinar. É esperançoso como o sertanejo.

É crime de morte enganar um coração-sertão. Não por ele mesmo, e muito menos por seu dono. O crime reside no fato de enganar quem confia tanto no que lhe é dado. Quem tem esperança demais. Tão acostumado que está em esperar pela chuva e confiar que ela um dia vem, o coitado coração coloca fé em tudo que lhe oferecem, sem garimpar o que lhe faz bem e o que é veneno.
O destino dos corações-sertão não é morrer de sede, mas morrer envenenados pela água que lhes foi presenteada com um sorriso no rosto e um brilho no olhar.

domingo, 28 de abril de 2013

O velho Francisco (Ticô)

Nas histórias, o herói é sempre aquele cara forte, jovem, galã, invencível, que consegue tudo o que quer... No entanto, desde criança, o meu exemplo de heroísmo é algo bem diferente desse estereótipo.
O meu herói tem calos nas mãos e rugas no rosto. Levanta antes do sol, todos os dias, e inicia sua labuta de tratar da terra e fazê-la florescer. É falível, como qualquer humano, mas aprende com os erros e é correto como poucos. É forte, mais bravo que a natureza.
Em seus mais de oitenta anos de caminhada, já viu morte, seca, pobreza, fome, violência... Venceu tudo isso com sua coragem de sertanejo. Desde menino aprendeu a importância do trabalho duro na construção do caráter do homem. Aprendeu na infância a pegar na enxada, plantar seu alimento e arrancar da terra o sustento de cada dia. Ainda jovem viu o pai ser assassinado e tornou-se o homem da casa. Cuidou da família, como faz até hoje...
Não é de muitos sorrisos. Guarda-os para quem os merece. Não gosta de fingimentos e é verdadeiro em cada gesto, olhar e palavra proferida. Há nele tanta serenidade, que consegue me fazer bem apenas com sua presença, em silêncio, ao meu lado.
O meu herói ensinou-me a amar a poesia, amar as histórias. O seu prazer em contá-las me fez perceber que era isso o que eu queria para a minha vida. Com ele aprendi a prezar pelo caráter, pela honra. Ensinou-me que o homem que não tem honra nada possui de belo, apenas de cruel. Me fez aprender na prática o significado de generosidade e grandeza. Mostrou-me que é possível presenciar a maldade humana sem deixar se contagiar por ela. Viu a feiura da vida e conservou a doçura do ser.
Agora, em qualquer lugar do mundo, o nome "Francisco" é conhecido. E quando esse nome é falado, logo o associam ao Papa jesuíta que agora toma a frente da Igreja de Pedro. Porém para mim, por toda a eternidade, o Francisco mais importante do mundo não é Papa, e nunca chegará a ser. Ele é um agricultor que acorda às 3:30h da manhã, dono de um caráter invejável, e profundamente terno em sua rudeza. Um verdadeiro herói. Acho que a palavra ternura vai sempre parecer com as suas mãos calejadas.


*Ao meu avô Francisco, que me ensinou a levar a vida de modo que eu possa me orgulhar dela.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Observações sobre ternura, amizade e jornalismo


José Mauro de Vasconcelos fala que é de pedaço em pedaço em que a gente faz a ternura. Eu sempre achei essa afirmação bonita, porém o Questão de Ordem me fez perceber o quanto de veracidade existe nela. De fato, a ternura a gente constrói aos pouquinhos, juntando os pedacinhos dela, diariamente, até tê-la prontinha no final.
Apesar do sofrimento, estresse, noites mal dormidas e não dormidas, lágrimas, surtadas, desentendimentos e tudo o mais de dificuldades que nós enfrentamos, eu tenho um orgulho gigante em constatar que nós construímos – de pedaço em pedaço - uma ternura forte, grandona e verdadeira. A ternura da gente é mais bonita que a de todo mundo, porque a cola que uniu cada partezinha que a compõe é uma mistura de sonhos em comum, admiração mútua, amizade, trabalho e essa doença (que eu poderia chamar de vocação, mas seria mentira) pelo jornalismo.
Eu vi, no correr desses quase dois meses de QO, cada um de nós crescendo jornalisticamente e trabalhando pra melhorar cada dia mais. Talvez os passos que a gente deu tenham sido pequenos (de formiga), quando observados de fora, mas pra mim, pelo menos, eles significaram muito. A gente aprendeu, com cada erro, a enfrentar as conseqüências dos nossos atos de frente, a apoiar uns aos outros, a não julgar os erros alheios e a ficarmos unidos. Talvez os erros tenham sido a parte mais importante dessa experiência.
Quando eu peguei o meu sonho de escrever, de usar o jornalismo pra tentar ordenar essa loucura diária que eu vejo todos os dias por aí, joguei na mala e parti de casa pra cá, eu não imaginava o quanto ia ser difícil conseguir realizar esse sonho. E nem por um segundo pensei que ia encontrar tanta gente incrível nessa cidade nova, tão diferente e longe da minha, mas com tanta cara de lar. Sem sombra de dúvidas, a universidade me trouxe muitos ganhos intelectuais, mas a parte mais importante e valiosa que ela me deu foram as pessoas que eu encontrei e com quem eu aprendi demais.
Essa experiência serviu pra conhecer mais todos vocês e aprender a admirar as potencialidades de cada um. E mesmo os momentos de choro, desespero, cansaço e doença, serviram pra eu perceber que a gente é mesmo uma equipe e que tem gente do meu lado pra qualquer parada. E agora, na reta final desse trabalho, eu estou muito orgulhosa do quanto eu consegui evoluir, mas principalmente, me orgulha er o crescimento de cada um de vocês. No fim, quando toda essa loucura passar, eu sei que vou sentir falta disso tudo. Afinal de contas, o que vai ser de mim sem conviver quase 24 horas direto com vocês, na mesma casa, tomando café juntos, compartilhando cansaço, sofrimento, desilusões e comidas nada saudáveis? Pelo menos eu sei que a ternura que a gente sofreu tanto pra construir ainda vai estar aqui, pra a gente poder usar e se aproveitar dela.


*Texto dedicado à minha turma (linda e terna) de jornalismo. Queria poder conseguir colocar pelo menos metade de tudo o que eu tenho pra falar aqui, mas no momento, tudo o que eu consegui foi esse texto. 

sábado, 20 de abril de 2013

Sobre o que nos escapa às mãos


A gente nunca consegue dar o devido valor ao que possui. Talvez isso se deva à eterna angústia da condição humana, ou a alguma outra explicação filosófica e complicada que, se eu tomasse conhecimento, acabaria me entristecendo. Hoje senti uma saudade dilacerante de ser criança e conseguir encarar a vida de frente, sem medos. Saudade de cair, me machucar, chorar um pouco e seguir em frente, sem temer novas feridas.
Talvez a grande explicação da vida nos seja dada antes de nascermos e por isso as crianças são assim, felizes. Só que com o tempo e a nossa péssima memória, deixamos essa explicação para trás e começamos a estabanar tudo. Não existe criança triste. E quando digo triste, refiro-me a essa tristeza profunda e espiritual que assola tantos adultos. Na infância a gente se entristece por situações pontuais, mas depois de chorar um pouco, levantamos prontos para outra brincadeira. Temos sempre um sorriso guardado de reserva para usar a qualquer momento.  Vai ver é isso que está faltando nas pessoas, um sorriso guardado no bolso, pra poder recorrer a ele em momentos de emergência.
Hoje, voltando pra casa, acabei levando um banho de chuva e gargalhei sozinha, no meio de uma avenida movimentada. Aquela água toda trouxe consigo muitas lembranças de quando a felicidade era mais fácil de ser encontrada, ou eu sabia procurar melhor por ela. Lembrei-me de como eu gostava de dançar na chuva e sentir os pingos caindo no meu rosto... Era como se a natureza estivesse me enviando um recado, dizendo-me que nem tudo é tão ruim quanto parece e que, se a gente procurar direitinho, encontra beleza em qualquer lugar.
Tudo isso me fez pensar que a criança que eu fui um dia ficaria desapontada em me ver hoje. A felicidade passou pela rua ao lado, acenou pra mim e seguiu em frente, mas eu não corri atrás dela. Tive medo de me machucar, de cair na correria e ralar os joelhos. Tive medo de dar tudo errado e eu ter que voltar pra casa de mãos vazias e com o coração cheio de desilusões. Queria poder voltar atrás, pegar emprestada um pouco daquela coragem de menina e correr o máximo que as minhas pernas agüentarem. Talvez a felicidade tenha parado em algum lugar e, na correria, eu ainda consiga alcançá-la. 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Sobre amor, ódio e Jornalismo


Jornalismo bom é feito com amor. Na realidade, é o amor (e a falta dele) que rege toda essa relação de pautas, notícias, entrevistados, deadline, diagramação, artigos, charges e tudo o mais.
Amor pelo jornalismo em si, pela profissão, pelo desconhecido, por aprender coisas novas, pelo café nosso de todas as noites, pelo sentimento de ser capaz de mudar alguma coisa, por ver o trabalho finalizado, pelo nosso nome impresso no jornal, pelo ato de escrever, por ver as pessoas lerem o jornal e gostarem do nosso texto, ou detestarem... Amor pelo desafio de viver um dia diferente do outro e aprender muita coisa que sem o jornalismo a gente jamais aprenderia.
Por outro lado, temos o desamor por nós mesmos. O jornalista, em toda essa relação, é quem mais é deixado de lado. Quando optamos por amar a profissão e tentar fazê-la do melhor jeito possível, acabamos colocando de lado o nosso sono, aquela festa maravilhosa que será substituída por uma coletiva com um político chatíssimo, a família, a pessoa amada, os amigos, a vaidade, a nossa saúde (gastrite, aqui vai mais uma leva de futuros jornalistas!), a ambição financeira... Enfim, a vida acaba sendo regida pela profissão.
Somos levados por uma relação de amor e ódio com o tempo. Por um lado, ele nos traz experiência, conhecimento e destreza na prática da profissão. No entanto, vivemos assombrados pelo fantasma do prazo, que está sempre ali na espreita. É o tempo que nos faz pensar no trabalho 24 horas por dia e sonhar com o editor te dando uma bronca por estourar o prazo. Quem nunca ouviu a seguinte reclamação: “Caramba, você não sabe falar de outra coisa? É só jornalismo o tempo inteiro... Vira o disco!”.
No entanto, apesar de tudo que a gente acaba tendo que passar, o jornalismo ainda é apaixonante. Deve existir nele algo de alucinógeno, que definitivamente causa uma dependência muito maior que todas essas substâncias que alteram a consciência. Como exemplo disso, temos os editores do Questão de Ordem trabalhando religiosamente no domingo à noite (e Dia do Jornalista), cantando aos berros no carro, sorrindo muito e jantando em um restaurante conversando sobre... Jornalismo!

sábado, 13 de abril de 2013

Bilhetinho


Finalmente ouvi a música de que tanto falavas. Adorei. Fiquei a me perguntar se você, ao me falar dela, já sabia que eu iria sorrir ao ouvi-la... Conheces-me tanto assim, ou essa foi uma daquelas coisas aleatórias e belas que sempre nos acontecem?  De uma forma ou de outra, saibas que eu aprecio não só o fato de me conheceres e compreenderes como mais ninguém, como também o absurdo do destino ser teu cúmplice e conspirar sempre a teu favor. Parece-me que ele trabalha ao teu lado para que eu guarde de ti apenas lembranças lindas. A própria palavra “beleza” já parece com teu riso. Mas, voltando à música, saiba que além de me fazer rir, ela fez nascer em mim uma vontade grande de dançar... Danças comigo? Mas eu quero dançar como quando menina, no meio da rua, na chuva, numa roda, sem medo da felicidade. Sem perspectivas de me machucar e rindo do barulho dos pingos caindo ao meu redor. Sabes que chuva sempre me fez sorrir. 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Poeminha


Ilustração: Érica Rodrigues
O homem lírico pega a poesia pela asa e tranca no papel
Prisão preventiva.
Vai que a danada resolve fugir, se esconder
Pra não correr esse risco, melhor prender. 
Na gaiola do papel tem espaços grandes entre as barras
Dá pra ela ver o mundo
E vice versa
Ele gosta de trancar também o sol
O mar
E aquele beija-flor que vem na sua janela de manhã.

O homem lírico queria trancar a sua tristeza no papel
Mas a tristeza é grande
E o homem lírico faz força pra ver se ela cabe
Mas não cabe.

O homem lírico viu um absurdo na rua
Pensou em trancá-lo no papel
Mas que serventia tem um absurdo preso?
Tem que estar solto ao vento,
Pra ver se em algum voo bate na cara de quem possa dar fim a ele.


*Obs: Finalmente eu consegui colocar em prática o meu plano de ilustrar algum texto aqui do blog. Amém! 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

De pedaço em pedaço é que se faz ternura


Hoje choveu Passado o dia inteiro. Pra falar a verdade, o Passado veio me buscar ainda em sonho, soprou um vento gelaaado que me perturbou o sono e tanto fez que me acordou. Achei que fazendo suas vontades e me pondo de pé ele iria embora, mas não... O danado grudou em mim que não me largou um minuto.
Não sei se os passados alheios são assim, mas o meu fica mancomunado com a chuva, faz pacto com o sol e complô com estrela cadente. E hoje ele usou de todos os seus comparsas pra me tirar o sossego.  Suspeito que até meu coração – traidor por excelência – participou da palhaçada.
E foi nessa de Passado psicopata e perseguidor que eu me dei conta de pra onde está indo o meu Presente. Pois não é que o danado parece querer enveredar pelos mesmos caminhos?! Na certa deve ter ouvido o Passado contar a nossa penosa história e ficou interessado. Mas, sinceramente, não sei como ele pode se sentir atraído por essa ideia .. O final da história é triste e o seu correr muito sangrento. Parece que ele gosta mesmo é de sangue, de violência, de ver o circo pegar fogo. E sangue alheio não serve não, tem que ser o meu, que tem a cor do vermelho mais viva.
Depois que fui acordada pelo vento frio que o Passado soprou, o Presente me pegou pela mão e me levou pra ler um livro. E lá bem pela metade das páginas estava escrito bem grande “de pedaço em pedaço é que se faz ternura”. O Presente foi e me apontou a frase com o dedo, mas não precisava pois eu já tinha lido. 
Passei o resto do dia vendo a chuva que caiu sem pausa (obra do Passado que deve ter pedido isso a ela como pagamento de algum favor) e pensando na tal frase. Por que será que o Presente fez questão de me mostrá-la? Pensei, pensei e por fim cheguei a uma conclusão: ele estava se justificando. Se é de pedaço em pedaço que se faz ternura, então é por isso que eu estou assim tão incompleta, em carne viva.
O bendito vai costurando a ponto cru os pedaços da ternura pra poder me juntar inteira no final. Mas ele é relaxado, tranquilão demais, não tem pressa de terminar o serviço... E enquanto ele não termina, eu vou derramando o meu sangue que tem o vermelho mais vivo e que ele acha bonito. Ou acha bonito ou tem inveja da história que ouviu Passado contar e quer fazer melhor, quer derramar ainda mais sangue e costurar sem correria pros pedaços ficarem bem pregadinhos. Sei que no fim essa ternura vai me custar uma dor danada e litros e litros de sangue e vida pra ficar inteira. Cuidado, Presente, se você demora demais a deixar a ternura prontinha pra a gente usar e abusar dela, pode não dar tempo... Pode um de nós dois morrer primeiro ou simplesmente desistir do outro. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre velhos, sabiás, corrós e galos de campina


A segunda morada da minha alma é um casarão vizinho ao meu. Nele vivem um velho, um menino, um Colibri e um Carcará. No jardim, cheio de roseiras mais espinhosas que floridas, há uma cerejeira em flor. Muitas vezes as flores que caem da árvore são carregadas pelo vento até o meu gramado... São lindas e efêmeras, vivem muito pouco quando se desprendem da planta. Das roseiras eu não me agrado, há nelas uma aridez de espírito que me afeta.
Muitas vezes o menino vem me visitar. Chega de surpresa, toca a campainha e aguarda que eu abra a porta com um sorriso estampado no rosto. É uma criança de riso fácil e grande doçura. Quando aparece, me faz companhia por várias horas e quando se vai leva consigo metade das minhas aflições. Gosta de brincar com o Colibri e os dois parecem se feitos da mesma matéria e fluido.
O velho nunca sai de casa. Tudo que sei a seu respeito limita-se aos relatos do menino. Sei que gosta de ficar na cama, às vezes lê, pouco conversa e tem um péssimo humor. Antes de ontem o vi aparecer na janela, há em sua expressão qualquer coisa de fardo e cansaço.
Quem mais me preocupa é o Carcará. Há na natureza daquele animal tanta maldade e oportunismo que não sei como pode conviver com qualquer outro ser vivo. Às vezes temo pela segurança do Colibri... Ele é tão pequeno para estar à mercê de um espírito tão perverso! Minhas preocupações nesse âmbito são tantas que já sonhei com o corpinho morto do Colibri estendido no gramado e o Carcará a comer os olhos do menino.
A maldita ave gosta de pousar nos galhos da cerejeira (como que para macular a pureza da árvore) e olhar perversamente para a minha casa. A mim ele nunca fez nenhum mal duradouro, mas vivo a esperar por isso e sei que não tarda a ele me ferir gravemente. Não sei como podem esses espíritos tão diversos conviverem em paz. Há alguma divina ou maldita energia que os une em um só ser.
          A minha alma gosta de ficar na janela e esperar que o vento traga espontaneamente alguma lembrança do casarão vizinho... Seja uma flor da cerejeira, seja o Colibri a vir sugar o néctar de minhas flores, ou mesmo o menino que venha correndo a alegrar e colorir o meu dia.
Às vezes ela espera, espera, e nada vem. Nesses dias, então, ela reúne toda a sua coragem e adentra o casarão vizinho... Têm dias que a visita é boa, em outros a minh'alma sai de lá em carne viva. E quando assim o é, volta pra casa e vai esperar que os ferimentos cicatrizem, até que, por fim, perca o medo e volte ao casarão... Quem sabe não encontra doçura na próxima visita? Ela poderia facilmente nunca mais colocar os pés em tal lugar, mas aí é que reside a beleza de tudo. O poeta disse mesmo que amar é mudar a alma de casa... E mudá-la mesmo sabendo o que nos espera por lá.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Carta ao pássaro-sol

Caro, eu te vi passar voando por aqui mais cedo e o teu semblante meio sorriso, meio aflição me deixou pensativa. Preocupação contigo, talvez... Ou vai ver eu só me reconheci em você.
Hoje acordei resolvida a enfim montar a minha barraquinha aqui na frente de casa pra distribuir felicidade pros necessitados, mas a minha visão de você passando me fez mudar essa resolução para amanhã. Calma, você não me deixou triste! Não sabes que meu sorriso é muito fácil de chegar e minha tristeza vai embora com qualquer assopro de criança?! É verdade, não sabes... Esqueço sempre que você pousou aqui poucas vezes. Mas não te aflijas comigo, tuas aflições já estão de bom tamanho!
Quero que saibas que não és o primeiro pássaro com quem meus caminhos cruzam, outro veio antes de você e me ensinou tudo o que eu sei. Não te apresento a ele porque vocês são demasiado parecidos e acho que não se entenderiam bem. No entanto, sei que no fundo ele não vai se importar se eu te contar o que aprendi sobre a tua espécie.
Já percebi que encontrastes por aí uma flor muito bela (a mais bela de todas, estais a pensar) e que o néctar dela possui um sabor que teu paladar nunca sonhou que pudesse existir. Sei que ela te encantou com seu cheiro, cores, encantos, e que você não consegue ver nenhum atrativo em qualquer outra flor. Isso é natural, todos da tua espécie passam por isso um dia.
Sei ainda que a tua flor é um espinheiro-alvar e imagino que quando fostes polinizá-la algum espinho transpassou teu peito. Posso supor a dor que deves ter sentido e sei que no teu íntimo achas que ela valeu a pena... Pela beleza da flor, pelo seu néctar maravilhoso e pelo sentimento de ter algo tão difícil de conseguir.
Mas meu belo pássaro-sol, é preciso estares ciente que sempre que te aproximares dessa flor serás espetado por um espinho. Quanto tempo podes aguentar isso? Eu temo pelo teu bem estar e por isso escrevo essas linhas.
Peço que não faças como o pássaro da antiga lenda celta que canta até morrer. Não te entregues a esse espinho que te perfura as entranhas apenas pelo encanto dessa flor. Há muita coisa bonita dentro de ti para se perder assim. Se voares mais alguns meses, sei que encontras outra flor tão bonita quanto, ou mais... Nasceste para uma flor que te acolha, que tenha sido feita para ti em delicadeza, tamanho e beleza.
O pássaro celta não tem consciência de que morrerá graças àquele espinho que perfura seu peito e por isso canta até que lhe falte vida para fazê-lo. Porém eu estou aqui para te alertar do teu morrer futuro... Vai embora, pássaro-sol! Se não fores vais morrer aí entre esses galhos selvagens e sem que o mundo conheça a tua beleza.
É este o intuito desta carta, espero que não aches um atrevimento de minha parte. Amanhã vou distribuir felicidade e preciso do meu coração leve, por isso decidi escrever-te. Peço que penses sobre o que aqui escrevi e se achares que tem fundamento, sigas os meus conselhos. Se não, espero que isso não te impeça de voltares à minha janela... Tua companhia faz muito bem ao meu espírito. Aqui me despeço, com votos de que sejas feliz.


P.S. Junto da carta vais achar uma caixinha, há dentro dela três sorrisos meus e um poema de Quintana... Eu sei que não é muito, mas espero que ajude a melhorar o teu semblante.