A segunda morada da minha alma é um casarão vizinho ao meu. Nele vivem um
velho, um menino, um Colibri e um Carcará. No jardim, cheio de roseiras mais
espinhosas que floridas, há uma cerejeira em flor. Muitas vezes as
flores que caem da árvore são carregadas pelo vento até o meu gramado... São
lindas e efêmeras, vivem muito pouco quando se desprendem da planta. Das
roseiras eu não me agrado, há nelas uma aridez de espírito que me afeta.
Muitas vezes o menino vem me visitar. Chega de surpresa, toca a campainha
e aguarda que eu abra a porta com um sorriso estampado no rosto. É uma criança
de riso fácil e grande doçura. Quando aparece, me faz companhia por várias
horas e quando se vai leva consigo metade das minhas aflições. Gosta de brincar
com o Colibri e os dois parecem se feitos da mesma matéria e fluido.
O velho nunca sai de casa. Tudo que sei a seu respeito limita-se aos
relatos do menino. Sei que gosta de ficar na cama, às vezes lê, pouco conversa
e tem um péssimo humor. Antes de ontem o vi aparecer na janela, há em sua
expressão qualquer coisa de fardo e cansaço.
Quem mais me preocupa é o Carcará. Há na natureza daquele animal tanta
maldade e oportunismo que não sei como pode conviver com qualquer outro ser
vivo. Às vezes temo pela segurança do Colibri... Ele é tão pequeno para estar à
mercê de um espírito tão perverso! Minhas preocupações nesse âmbito são tantas
que já sonhei com o corpinho morto do Colibri estendido no gramado e o Carcará
a comer os olhos do menino.
A maldita ave gosta de pousar nos galhos da cerejeira (como que para
macular a pureza da árvore) e olhar perversamente para a minha casa. A mim ele
nunca fez nenhum mal duradouro, mas vivo a esperar por isso e sei que não tarda
a ele me ferir gravemente. Não sei como podem esses espíritos tão diversos
conviverem em paz. Há
alguma divina ou maldita energia que os une em um só ser.
A minha alma gosta de ficar na
janela e esperar que o vento traga espontaneamente alguma lembrança do casarão
vizinho... Seja uma flor da cerejeira, seja o Colibri a vir sugar o néctar de
minhas flores, ou mesmo o menino que venha correndo a alegrar e colorir o meu
dia.
Às vezes ela espera, espera, e nada vem. Nesses dias, então, ela reúne
toda a sua coragem e adentra o casarão vizinho... Têm dias que a visita é boa,
em outros a minh'alma sai de lá em carne viva. E quando assim o é, volta
pra casa e vai esperar que os ferimentos cicatrizem, até que, por fim, perca o medo e
volte ao casarão... Quem sabe não encontra doçura na próxima visita? Ela poderia facilmente
nunca mais colocar os pés em tal lugar, mas aí é que reside a beleza de tudo. O
poeta disse mesmo que amar é mudar a alma de casa... E mudá-la mesmo sabendo o
que nos espera por lá.
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