quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre velhos, sabiás, corrós e galos de campina


A segunda morada da minha alma é um casarão vizinho ao meu. Nele vivem um velho, um menino, um Colibri e um Carcará. No jardim, cheio de roseiras mais espinhosas que floridas, há uma cerejeira em flor. Muitas vezes as flores que caem da árvore são carregadas pelo vento até o meu gramado... São lindas e efêmeras, vivem muito pouco quando se desprendem da planta. Das roseiras eu não me agrado, há nelas uma aridez de espírito que me afeta.
Muitas vezes o menino vem me visitar. Chega de surpresa, toca a campainha e aguarda que eu abra a porta com um sorriso estampado no rosto. É uma criança de riso fácil e grande doçura. Quando aparece, me faz companhia por várias horas e quando se vai leva consigo metade das minhas aflições. Gosta de brincar com o Colibri e os dois parecem se feitos da mesma matéria e fluido.
O velho nunca sai de casa. Tudo que sei a seu respeito limita-se aos relatos do menino. Sei que gosta de ficar na cama, às vezes lê, pouco conversa e tem um péssimo humor. Antes de ontem o vi aparecer na janela, há em sua expressão qualquer coisa de fardo e cansaço.
Quem mais me preocupa é o Carcará. Há na natureza daquele animal tanta maldade e oportunismo que não sei como pode conviver com qualquer outro ser vivo. Às vezes temo pela segurança do Colibri... Ele é tão pequeno para estar à mercê de um espírito tão perverso! Minhas preocupações nesse âmbito são tantas que já sonhei com o corpinho morto do Colibri estendido no gramado e o Carcará a comer os olhos do menino.
A maldita ave gosta de pousar nos galhos da cerejeira (como que para macular a pureza da árvore) e olhar perversamente para a minha casa. A mim ele nunca fez nenhum mal duradouro, mas vivo a esperar por isso e sei que não tarda a ele me ferir gravemente. Não sei como podem esses espíritos tão diversos conviverem em paz. Há alguma divina ou maldita energia que os une em um só ser.
          A minha alma gosta de ficar na janela e esperar que o vento traga espontaneamente alguma lembrança do casarão vizinho... Seja uma flor da cerejeira, seja o Colibri a vir sugar o néctar de minhas flores, ou mesmo o menino que venha correndo a alegrar e colorir o meu dia.
Às vezes ela espera, espera, e nada vem. Nesses dias, então, ela reúne toda a sua coragem e adentra o casarão vizinho... Têm dias que a visita é boa, em outros a minh'alma sai de lá em carne viva. E quando assim o é, volta pra casa e vai esperar que os ferimentos cicatrizem, até que, por fim, perca o medo e volte ao casarão... Quem sabe não encontra doçura na próxima visita? Ela poderia facilmente nunca mais colocar os pés em tal lugar, mas aí é que reside a beleza de tudo. O poeta disse mesmo que amar é mudar a alma de casa... E mudá-la mesmo sabendo o que nos espera por lá.

Nenhum comentário:

Postar um comentário