segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

De pedaço em pedaço é que se faz ternura


Hoje choveu Passado o dia inteiro. Pra falar a verdade, o Passado veio me buscar ainda em sonho, soprou um vento gelaaado que me perturbou o sono e tanto fez que me acordou. Achei que fazendo suas vontades e me pondo de pé ele iria embora, mas não... O danado grudou em mim que não me largou um minuto.
Não sei se os passados alheios são assim, mas o meu fica mancomunado com a chuva, faz pacto com o sol e complô com estrela cadente. E hoje ele usou de todos os seus comparsas pra me tirar o sossego.  Suspeito que até meu coração – traidor por excelência – participou da palhaçada.
E foi nessa de Passado psicopata e perseguidor que eu me dei conta de pra onde está indo o meu Presente. Pois não é que o danado parece querer enveredar pelos mesmos caminhos?! Na certa deve ter ouvido o Passado contar a nossa penosa história e ficou interessado. Mas, sinceramente, não sei como ele pode se sentir atraído por essa ideia .. O final da história é triste e o seu correr muito sangrento. Parece que ele gosta mesmo é de sangue, de violência, de ver o circo pegar fogo. E sangue alheio não serve não, tem que ser o meu, que tem a cor do vermelho mais viva.
Depois que fui acordada pelo vento frio que o Passado soprou, o Presente me pegou pela mão e me levou pra ler um livro. E lá bem pela metade das páginas estava escrito bem grande “de pedaço em pedaço é que se faz ternura”. O Presente foi e me apontou a frase com o dedo, mas não precisava pois eu já tinha lido. 
Passei o resto do dia vendo a chuva que caiu sem pausa (obra do Passado que deve ter pedido isso a ela como pagamento de algum favor) e pensando na tal frase. Por que será que o Presente fez questão de me mostrá-la? Pensei, pensei e por fim cheguei a uma conclusão: ele estava se justificando. Se é de pedaço em pedaço que se faz ternura, então é por isso que eu estou assim tão incompleta, em carne viva.
O bendito vai costurando a ponto cru os pedaços da ternura pra poder me juntar inteira no final. Mas ele é relaxado, tranquilão demais, não tem pressa de terminar o serviço... E enquanto ele não termina, eu vou derramando o meu sangue que tem o vermelho mais vivo e que ele acha bonito. Ou acha bonito ou tem inveja da história que ouviu Passado contar e quer fazer melhor, quer derramar ainda mais sangue e costurar sem correria pros pedaços ficarem bem pregadinhos. Sei que no fim essa ternura vai me custar uma dor danada e litros e litros de sangue e vida pra ficar inteira. Cuidado, Presente, se você demora demais a deixar a ternura prontinha pra a gente usar e abusar dela, pode não dar tempo... Pode um de nós dois morrer primeiro ou simplesmente desistir do outro. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sobre velhos, sabiás, corrós e galos de campina


A segunda morada da minha alma é um casarão vizinho ao meu. Nele vivem um velho, um menino, um Colibri e um Carcará. No jardim, cheio de roseiras mais espinhosas que floridas, há uma cerejeira em flor. Muitas vezes as flores que caem da árvore são carregadas pelo vento até o meu gramado... São lindas e efêmeras, vivem muito pouco quando se desprendem da planta. Das roseiras eu não me agrado, há nelas uma aridez de espírito que me afeta.
Muitas vezes o menino vem me visitar. Chega de surpresa, toca a campainha e aguarda que eu abra a porta com um sorriso estampado no rosto. É uma criança de riso fácil e grande doçura. Quando aparece, me faz companhia por várias horas e quando se vai leva consigo metade das minhas aflições. Gosta de brincar com o Colibri e os dois parecem se feitos da mesma matéria e fluido.
O velho nunca sai de casa. Tudo que sei a seu respeito limita-se aos relatos do menino. Sei que gosta de ficar na cama, às vezes lê, pouco conversa e tem um péssimo humor. Antes de ontem o vi aparecer na janela, há em sua expressão qualquer coisa de fardo e cansaço.
Quem mais me preocupa é o Carcará. Há na natureza daquele animal tanta maldade e oportunismo que não sei como pode conviver com qualquer outro ser vivo. Às vezes temo pela segurança do Colibri... Ele é tão pequeno para estar à mercê de um espírito tão perverso! Minhas preocupações nesse âmbito são tantas que já sonhei com o corpinho morto do Colibri estendido no gramado e o Carcará a comer os olhos do menino.
A maldita ave gosta de pousar nos galhos da cerejeira (como que para macular a pureza da árvore) e olhar perversamente para a minha casa. A mim ele nunca fez nenhum mal duradouro, mas vivo a esperar por isso e sei que não tarda a ele me ferir gravemente. Não sei como podem esses espíritos tão diversos conviverem em paz. Há alguma divina ou maldita energia que os une em um só ser.
          A minha alma gosta de ficar na janela e esperar que o vento traga espontaneamente alguma lembrança do casarão vizinho... Seja uma flor da cerejeira, seja o Colibri a vir sugar o néctar de minhas flores, ou mesmo o menino que venha correndo a alegrar e colorir o meu dia.
Às vezes ela espera, espera, e nada vem. Nesses dias, então, ela reúne toda a sua coragem e adentra o casarão vizinho... Têm dias que a visita é boa, em outros a minh'alma sai de lá em carne viva. E quando assim o é, volta pra casa e vai esperar que os ferimentos cicatrizem, até que, por fim, perca o medo e volte ao casarão... Quem sabe não encontra doçura na próxima visita? Ela poderia facilmente nunca mais colocar os pés em tal lugar, mas aí é que reside a beleza de tudo. O poeta disse mesmo que amar é mudar a alma de casa... E mudá-la mesmo sabendo o que nos espera por lá.