Li que, em sua etimologia, a palavra amigo deriva de animi (alma) e custas
(custódia), sendo 'amigo' um 'guardião de alma'. Esse significado me pareceu
extremamente apropriado. Acredito que quando criamos laços de amizade,
entregamos aos amigos um pedacinho da nossa alma para que eles o guardem, bem
protegido, consigo. No decorrer da vida, nossa alma acaba então espalhada pelo
mundo, levada aos quatro cantos por guardiões que testemunharam e
compartilharam nossos momentos bons e ruins.
Talvez por a um amigo ser confiada uma parte tão frágil e essencial de
nós, perdê-lo é extremante triste e melancólico. E aqui não me refiro a
perdê-lo para a morte. Quando a morte nos leva um amigo, o pedacinho da nossa
alma que ele guarda vai junto, para lhe fazer companhia na vida eterna. Aqui me
refiro à tristeza de perder um amigo para a vida. Aquele macabro ritual em que
o guardião devolve a coisa que ele deveria proteger, mas não é mais capaz de
fazê-lo. Às vezes nós queremos o pedacinho de alma que ele guarda de volta, mas
em outras ele teima em devolvê-lo à força e não nos resta alternativa senão
costurá-lo de volta, a pontos crus, muito dolorosamente.
Eu não seria capaz de contar quantos pedaços da minha alma andam
espalhados por aí. Não caberiam nos dedos e minha matemática nunca foi boa. De
qualquer maneira, isso pouco importa. Importa-me mais saber onde eles estão
guardados. Se em um lugar visível, se à cabeceira dos amigos, se esquecidos
embaixo da cama, cobertos de poeira, ou em uma prateleira nunca usada...
Hoje fiz uma faxina em mim, selecionei e limpei os pedacinhos de alma de
que sou guardiã. Fui a uma loja de material de construção e comprei uma
prateleira, instalei-a de frente à minha cama, em um lugar em que ela é a
primeira coisa que vejo ao acordar. Lá coloquei os pedacinhos de alma,
limpinhos e organizados.
Na faxina encontrei os amigos antigos que eu não vejo há muito tempo, mas
que me fizeram muito feliz. Lembrei de como a gente vivia as coisas
intensamente, de como éramos inconsequentes e radiantes. Achávamos que a vida
era tudo ou nada, que as paixões eram as últimas que iríamos viver. Carinhosamente
os enfileirei na prateleira, bem guardadinhos, para que eu possa lembrar todos
os dias de tudo o que aprendi com eles.
Encontrei também os pedacinhos de alma dos amigos antigos que ainda estão
ao meu lado diariamente. Que belas almas eles possuem! Vê-las assim, em sua
simplicidade, me fez pensar na beleza das relações cotidianas, nos sorrisos
partilhados, na cumplicidade não-verbal que se expressa em pequenos gestos e
atitudes, na agressividade e na forma como nós nos protegemos, mesmo que inconscientemente.
Encontrei ainda os amigos que a vida me trouxe por acaso, quando eu não
esperava nada dela. Por esses eu agradeço sempre, pois eles estão sempre
comigo. São eles que me fazem gargalhar e neles eu vejo refletidos os meus
sonhos. Um sentimento forte de admiração tomou conta de mim ao encontra-los. Muito
longe de casa, a vida me apresentou a amigos que me ensinaram a tolerar as
diferenças e até aprender a ver a beleza que existe nelas. A palavra ternura já
se parece com eles.
Em um canto meio esquecido, encontrei algumas marcas queimadas. Com um
pouco de tristeza constatei que eram os lugares dos amigos que se foram. Tentei
lembrar dos bons momentos que partilhei com eles e senti muita tristeza pelo
pouco talento humano para a grandiosidade.
Depois que terminei de organizar os amigos na minha prateleira, me sinto
muito mais leve. Encontrá-los todos me lembrou do muito que aprendi e do quanto
os admiro. E como são diferentes os amigos! Mas isso não importa, afinal as diferenças
não podem ser maiores que os afetos. A grandiosidade da vida faz essas diferenças
parecerem menores que poeira. A vida é muito maior que isso... A vida é muito
maior que a gente. Enfrentar os dias parece uma tarefa bem simples agora.
*A Dan e Lucas que abriram a porta e a
Carlinhos que, com o espírito do acendedor de lampiões de Jorge de Lima, tem teimado em acender a luz sempre que ela se apaga.
Apropriado e muitíssimo lindo...! mas tem amigo de que mais do que saudade, sentimos necessidade dele, não conseguimos deixa-lo na prateleira sem nunca voltarmos pra velo, nem trancado no armário e nunca mas abri-lo... eu transformei no amigo imaginário, assim é o levo sempre comigo...
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