Acordo e percebo que esqueci de desligar a música. "É hoje o dia da alegria e a tristeza nem pode pensar em chegar!", cantam os meus fones de ouvido. Sorrio com a ironia daquela letra, justamente neste dia que não me parece nem um pouco alegre. Talvez seja importante acordar com essa mensagem de otimismo. Pelo menos a ironia serviu pra me lembrar que dias alegres existem com mais frequência do que consigo conceber agora.
Lembro que fui dormir ouvindo o Gonzaguinha cantar que pegou um sonho, desceu o Morro de São Carlos e pôs a perna no mundo. Ele achava que pertencia ao mundo! Essa ideia é tão familiar que até consegue me fazer gargalhar, neste dia tão pouco cavalheiresco. Acho que ele também era ave de rapina... Quantas gaiolas será que deixou pra trás para sê-lo?
Já faz um tempo que encontrei uma águia com a asa quebrada e a trouxe pra casa. Tenho cuidado dela desde então. O problema é que acho que me empenhei demais nos cuidados... Acho que dei amor demais pra ela. Quanto mais cuido da águia, mais forte ela fica. Anteontem a vi olhando pro céu com semblante de sonho e saudade.
Quando criança tentei criar uma galinha d'água. Linda! E eu a amei tanto! A amei tão sinceramente que nunca cortei suas asas. Achei que seria crueldade cortá-las. E seria. Nunca cheguei a saber se ela também me amava, mas o fato é que um dia ela voou e se foi. Nunca mais a vi. Dela sobraram apenas algumas penas no lugar onde costumava dormir.
Muitos anos depois vi um personagem de cinema dizer que não devemos amar criaturas selvagens. Quanto mais amamos, mais fortes elas ficam, até terem forças pra voar até a árvore mais próxima e depois pro céu. Não fazem por mal, apenas é de sua natureza a liberdade. Elas pertencem ao céu e, a princípio, é isto que nos faz amá-las. Dizem que as mais belas coisas da vida são livres e selvagens. Acho que é verdade.
Parece que a asa da águia está cada dia melhor. Acho que não demora a ela alçar voo. Mesmo depois de todo esse tempo, da galinha d'água, do filme e tudo o mais, cometi o erro de dar meu coração a um ser selvagem. Sei que ela precisa ir, voar por aí e conhecer o mundo. Em seu voo solitário ela vai aprender muito, vai ser quem nasceu pra ser. Não adianta tentar mudar isso, afinal, é o que há de mais bonito nela. Espero que ela consiga mostrar para todos quanta beleza existe em seu âmago.
A águia acordou. Sua asa está boa, afinal. Ela me deu um último olhar e se perdeu no céu azul. Agora parece apenas um pontinho escuro, lá longe. Como está bonito o céu de hoje!
*Baseado em:
http://letras.mus.br/gonzaguinha/46266/
http://letras.mus.br/monobloco-musicas/768511/
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-2736/
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
sábado, 9 de novembro de 2013
Cinismo
Hoje ouvi do
meu apartamento uma briga de casal. O relacionamento, pelo que pude perceber,
acabara por uma traição da parte dela. Eles brigavam a plenos pulmões na frente
do prédio, indiferentes a todos os moradores que os ouviam proferir ofensas e
confessar intimidades.
O rapaz a
acusava de tê-lo trocado por um cara rico e ela nem se dava ao trabalho de revidar.
Na minha escuta, primeiro tomei partido do rapaz. Ele parecia muito magoado. No
entanto, no auge da discussão ele começou a chamá-la de puta. Achei aquilo
muito forte! E ela apenas ouvia, balbuciava uma ou duas palavras e se calava,
enquanto ele gritava para a rua inteira o quanto a achava vagabunda. Senti
vontade de gritar: “moça, diga alguma coisa! Não deixe esse cara te tratar
assim!”, mas não gritei nada e ela aguentou as ofensas até o fim.
Fiquei me
perguntando o porquê daquela moça ter se apaixonado por um cara que acabaria gritando coisas
horríveis sobre ela para quem quisesse ouvir. Teria sido ele, no início de
tudo, um gentleman? Duvido muito... Teria ao menos, ao longo do relacionamento,
dado a ela uma flor? Teria ele usado a estranha e eficiente linguagem dos
namorados de Drummond?
Imaginei
quantas coisas bonitas eles deviam ter vivido juntos e que agora, naquele
momento de raiva, nada significavam. Estava tudo esquecido e acabado. Cada um
queria apenas sair fazendo o maior estardalhaço possível, batendo a porta e
deixando pra trás muita bagunça e sofrimento. Se um dia eles se encontrarem na
rua, muito tempo depois das ofensas gritadas na frente do meu prédio, será que
irão sorrir um pro outro, se abraçar e perguntar “oi, tudo bem? Quanto
tempo!"? Ou vão apenas fingir que não se viram ou não se reconheceram? Cartola
disse que de cada amor a gente herda só o cinismo. Aquele casal desconhecido
brigando me fez perceber que essa frase tem muito de verdade.
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