domingo, 1 de dezembro de 2013

Amizade ou a vida com adornos

Li que, em sua etimologia, a palavra amigo deriva de animi (alma) e custas (custódia), sendo 'amigo' um 'guardião de alma'. Esse significado me pareceu extremamente apropriado. Acredito que quando criamos laços de amizade, entregamos aos amigos um pedacinho da nossa alma para que eles o guardem, bem protegido, consigo. No decorrer da vida, nossa alma acaba então espalhada pelo mundo, levada aos quatro cantos por guardiões que testemunharam e compartilharam nossos momentos bons e ruins.
Talvez por a um amigo ser confiada uma parte tão frágil e essencial de nós, perdê-lo é extremante triste e melancólico. E aqui não me refiro a perdê-lo para a morte. Quando a morte nos leva um amigo, o pedacinho da nossa alma que ele guarda vai junto, para lhe fazer companhia na vida eterna. Aqui me refiro à tristeza de perder um amigo para a vida. Aquele macabro ritual em que o guardião devolve a coisa que ele deveria proteger, mas não é mais capaz de fazê-lo. Às vezes nós queremos o pedacinho de alma que ele guarda de volta, mas em outras ele teima em devolvê-lo à força e não nos resta alternativa senão costurá-lo de volta, a pontos crus, muito dolorosamente. 
Eu não seria capaz de contar quantos pedaços da minha alma andam espalhados por aí. Não caberiam nos dedos e minha matemática nunca foi boa. De qualquer maneira, isso pouco importa. Importa-me mais saber onde eles estão guardados. Se em um lugar visível, se à cabeceira dos amigos, se esquecidos embaixo da cama, cobertos de poeira, ou em uma prateleira nunca usada... 
Hoje fiz uma faxina em mim, selecionei e limpei os pedacinhos de alma de que sou guardiã. Fui a uma loja de material de construção e comprei uma prateleira, instalei-a de frente à minha cama, em um lugar em que ela é a primeira coisa que vejo ao acordar. Lá coloquei os pedacinhos de alma, limpinhos e organizados.
Na faxina encontrei os amigos antigos que eu não vejo há muito tempo, mas que me fizeram muito feliz. Lembrei de como a gente vivia as coisas intensamente, de como éramos inconsequentes e radiantes. Achávamos que a vida era tudo ou nada, que as paixões eram as últimas que iríamos viver. Carinhosamente os enfileirei na prateleira, bem guardadinhos, para que eu possa lembrar todos os dias de tudo o que aprendi com eles.
Encontrei também os pedacinhos de alma dos amigos antigos que ainda estão ao meu lado diariamente. Que belas almas eles possuem! Vê-las assim, em sua simplicidade, me fez pensar na beleza das relações cotidianas, nos sorrisos partilhados, na cumplicidade não-verbal que se expressa em pequenos gestos e atitudes, na agressividade e na forma como nós nos protegemos, mesmo que inconscientemente.
Encontrei ainda os amigos que a vida me trouxe por acaso, quando eu não esperava nada dela. Por esses eu agradeço sempre, pois eles estão sempre comigo. São eles que me fazem gargalhar e neles eu vejo refletidos os meus sonhos. Um sentimento forte de admiração tomou conta de mim ao encontra-los. Muito longe de casa, a vida me apresentou a amigos que me ensinaram a tolerar as diferenças e até aprender a ver a beleza que existe nelas. A palavra ternura já se parece com eles.
Em um canto meio esquecido, encontrei algumas marcas queimadas. Com um pouco de tristeza constatei que eram os lugares dos amigos que se foram. Tentei lembrar dos bons momentos que partilhei com eles e senti muita tristeza pelo pouco talento humano para a grandiosidade.

Depois que terminei de organizar os amigos na minha prateleira, me sinto muito mais leve. Encontrá-los todos me lembrou do muito que aprendi e do quanto os admiro. E como são diferentes os amigos! Mas isso não importa, afinal as diferenças não podem ser maiores que os afetos. A grandiosidade da vida faz essas diferenças parecerem menores que poeira. A vida é muito maior que isso... A vida é muito maior que a gente. Enfrentar os dias parece uma tarefa bem simples agora.



*A Dan e Lucas que abriram a porta e a Carlinhos que, com o espírito do acendedor de lampiões de Jorge de Lima, tem teimado em acender a luz sempre que ela se apaga.