- Escuta, vem cá! Eu te decifrei! Finalmente compreendi o enigma por trás do teu olhar!
Quando teu espírito me disse "decifra-me ou devoro-te", eu relutei. Tive medo de me perder nas tuas metáforas (afinal, as minhas já me angustiam por demasiado!) e permiti que me devorastes.
Fiz o caminho inverso. Usei esse tempo em que fiquei escondida na penumbra úmida de tuas entranhas para te estudar e compreender. Escutei as batidas do teu coração de dentro, senti tua respiração passar por mim e vi teu sangue correr mais rápido em alguns momentos especiais. Percebi que foste feito para o amor e para a liberdade... E que os dois caminham sempre de mãos dadas inspecionando o funcionamento de todas as tuas células. Não existe soberania de um sobre o outro e a princípio isso me pareceu bom. Com o tempo, porém, comecei a entender a complexidade daquela relação. Teu amor é livre, moço! Não me pertence não... Quando criaram teu espírito o fizeram sem amarras de nenhuma espécie, então quem sou eu pra querer prender teu amor pra mim?
Devia ter entendido isso logo a princípio. Teus olhos foram leais a mim e avisaram desde sempre, mas eu preferi que me devorastes a ver a verdade que estava ali, bem na minha frente. Essa pureza tímida e alegria contida que demonstras ao me olhar sempre me trouxe dúvidas. Achava que era só comigo que as usava... Doeu, moço, quando percebi que tua natureza é dividir o que tens de bom com todos.
Decifrei que gostas de se arriscar, de sentir uma ponta de adrenalina vez por outra. Cativas a todos, mas nem todos te cativam. Gostas de jogar pistas a esses que conseguem galgar com sucesso a jornada até teu coração. Por que não falas, moço? Por que não cantas? Por que complicas tudo? Por medo é que não é, pois se teu sorriso espanta todos os meus medos, o que não já terá feito aos teus?
Tu não serves de inspiração. Não foi pra isso que te criaram. Eu é que sou teimosa e te uso sempre do jeito errado... Mas calma, agora que te decifrei vou tentar fazer direitinho! Fui eu quem nasceu pra ser inspiração. Eu e meus medos loucos, minha alegria inconstante e espalhada, somada a essa paixão pela vida que tenho. A minha capacidade de fazer tudo ao léu e de qualquer jeito, estabanar as coisas e colocar a vida (colorida) de pernas pro ar.
Tu, por outro lado, nasceste foi pra pegar a inspiração pela goela e fazer dela arte. Usa essa tua calma pra arrancar sorrisos tortos! Bota o calor dos teus abraços nas palavras! Há tanta prosa e poesia dentro de ti, rapaz, que faz gosto de se ver! Devias botar tudo isso pra fora e seguir teu destino!
Eu digo isso porque estive no teu íntimo e vi por lá toda sorte de contos, crônicas, sonetos e sextilhas. Bota isso no papel, moço, que o mundo merece ler! Usa o papel como teu aliado sempre. Não precisas de sentimentos fortes pra escrever, nasceste pra amar e pra falar de amor.
Agora que te decifrei, não faças como a esfinge. Não te mates, que a morte tem pena de te levar.
Foge de mim, moço! Corre! Vai embora enquanto é tempo! Se ficares ou eu te mato devagarinho ou tu morres por si só. Não penses em mim, não olhes pra trás, apenas corre o máximo que tuas pernas aguentarem.
Meu coração é terra de nascer roseira, até tem qualquer coisa de bela, mas tem espinhos e aguenta muito sol e pouca chuva. Tenho medo que te fures, te machuques ou morras de sede ou calor. Se a gente mistura a minha terra com a tua faz medo não nascer mais nada, faz medo você não vingar.
Vai logo embora, que eu nasci pra aprisionar e tu para seres livre.